O governo federal acumula um déficit primário que ultrapassa os R$ 105 bilhões entre janeiro e agosto deste ano, o pior resultado para as contas públicas no período desde a pandemia, em 2020.
Nesse ritmo de gastos mais acelerados que receitas, a estimativa do mercado financeiro é de que as contas públicas terminem o ano com R$ 106,5 bilhões negativos, enquanto o próprio governo espera um rombo de R$ 141,4 bilhões.
Além disso, segundo economistas ouvidas pelo g1 é bastante improvável que o déficit seja zerado em 2024, como pretende o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Se essas estimativas se concretizarem, será o retorno dos resultados negativos após uma interrupção apenas em 2022, quando houve superávit. Antes, o país havia passado por uma sequência de oito anos de déficit.
Os resultados ruins nas contas públicas podem gerar impactos importantes sobre a economia do país e, consequentemente, para a população.
- 🏃 a insegurança para os investidores com o rombo nas contas do governo, o que pode levar a uma saída de recursos do Brasil para outros países vistos como mais seguros;
- 📉 a redução de investimentos no país, já que os empresários ficam mais avessos ao risco, produzem menos, geram menos emprego e menos renda para a população;
- 🛑 a possibilidade de estagnação da atividade econômica, dado o cenário mais incerto;
- 📈 o aumento das projeções de inflação, pois os gastos elevados precisam ser cobertos pela emissão de moeda;
- 💰 o aumento de juros, pois o governo precisaria oferecer retornos mais expressivos para os investidores para atrair dinheiro estrangeiro;
O que significa um rombo nas contas públicas?
Em poucas palavras, um rombo nas contas públicas significa que o país está gastando mais do que arrecadando, antes do pagamento de juros da dívida. Na literatura econômica, a situação é chamada de déficit primário.
“O déficit primário ocorre quando a arrecadação federal é inferior às despesas, ou seja, o dinheiro que o governo possui é insuficiente para pagar todas as contas públicas”, explica Ariane Benedito, economista e RI da Esh Capital.
As maiores dessas contas são os pagamentos de aposentados e pensionistas do INSS, os salários de funcionários públicos, gastos com auxílios sociais, subsídios e as despesas essenciais de um governo.
A chefe de economia da Rico, Rachel de Sá, faz uma analogia: pensando a lógica das contas do governo dentro de um orçamento familiar, o déficit primário aconteceria quando o salário não fosse o suficiente para pagar as contas.
Assim, a família pegaria um empréstimo para pagar as contas e o seu financiador (que é quem vai receber os juros pagos pela família) seria o banco. Para conseguir pagar o empréstimo e não ter mais problemas com suas contas básicas, a família teria duas opções: diminuir os gastos ou aumentar os ganhos.
Para o governo, a lógica é a mesma. O déficit só pode ser reduzido caso haja uma forte queda nos gastos, ou que a arrecadação federal aumente o suficiente para fechar no azul.
A solução proposta pelo governo federal tem sido a de aumentar os ganhos, como foi proposto pelo Ministério da Fazenda no projeto do novo arcabouço fiscal.
Ariane explica, no entanto, que, diferente de uma família, o governo não é um gerador de capital, mas sim um utilizador. Em outras palavras, nenhum governo tem a capacidade de gerar dinheiro para a economia, mas é ele quem utiliza parte do dinheiro que empresas e população geram, distribuindo a sua parte desse capital entre todos os setores do país, como educação, saúde e segurança, além de pagar auxílios e servidores.
A forma como o governo pega sua parte de toda a receita que é gerada dentro do país é com o pagamento de impostos, tanto os pagos pelas pessoas físicas quanto pelas pessoas jurídicas.
Dessa forma, para que o Brasil tenha uma maior arrecadação, diminuindo o rombo nas contas públicas, o governo precisa arrecadar mais com os impostos. E, para isso, depende de um crescimento expressivo da economia, que aumente a produção de setores como a indústria e os serviços.
Como o Brasil chegou ao déficit bilionário?
De 2014 a 2021, o Brasil registrou oito resultados negativos consecutivos nas contas públicas. A situação ficou ainda pior em 2020, durante a pandemia, que trouxe fortes impactos para a economia tanto por uma menor arrecadação quanto pelo aumento dos gastos com os auxílios emergenciais. Naquele ano, o rombo foi de quase R$ 900 bilhões.
No ano seguinte, em 2021, o país diminui seu déficit, que foi de pouco mais de R$ 40 bilhões, mas foi só em 2022, depois de oito anos, que o governo conseguiu registrar um superávit, de quase R$ 58 bilhões, segundo o Tesouro Nacional.
Ariane, da Esh, destaca que, entre 2021 e 2022, o governo conseguiu arrecadar mais dinheiro por conta da valorização das commodities. O maior destaque foi o petróleo, que valorizou 53,74% entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, mas chegou a disparar cerca de 120% em maio do ano passado. Parte dessa valorização se transformou em pagamento de dividendos recordes por parte da Petrobras.
Também é importante destacar, de acordo com a economista, que o superávit tem relação direta com a inflação elevada do último ano. Com preços maiores, o pedaço que o governo consegue “abocanhar” com os impostos também é maior.
Porém, para que a arrecadação seja contínua e saudável (em vez de depender do sobe e desce das commodities e da inflação), o país precisa crescer. “Quanto mais produto é produzido e empregos são gerados, mais impostos serão cobrados e maior é a arrecadação”, aponta a economista.
Mas o crescimento que foi observado no primeiro semestre de 2023 não foi o suficiente para gerar essa receita mais expressiva. Isso porque, segundo Ariane, o setor que realmente teve uma grande expansão foi a agropecuária, que conta com uma série de isenções e não gera tantos impostos para a União.
O Produto Interno Bruto (PIB) do agro cresceu cerca de 17% no segundo trimestre de 2023 em comparação com o mesmo período de 2022. Já os serviços e a indústria, que pagam mais impostos, mostram um desempenho mais tímido. Os serviços crescerem 2,3% no mesmo período, enquanto a indústria teve alta de só 1,5%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em comparação trimestral, a agropecuária avançou 21% no primeiro trimestre deste ano e manteve o bom resultado no segundo, com uma leve correção para baixo de 0,9%.
“A gente cresceu, mas não de uma forma qualitativa para que o governo arrecadasse mais. E para crescer, precisa haver produção, mas o empresário só vai produzir se ele entender que vai ter demanda para aquilo, se o consumo doméstico der sinais de melhora”, pontua Ariane.
Menos confiança, menos dinheiro
Outra forma do governo arrecadar dinheiro é com o investimento estrangeiro, que também não vive os melhores dias.
No ano passado, com os juros bastante elevados no Brasil e as commodities em alta, de janeiro a agosto, o investimento direto somou US$ 59,2 bilhões. No mesmo período de 2023, entrou um montante de US$ 37,9 bilhões no país, queda de 36%, segundo o Banco Central.
Ainda que o Brasil permaneça com taxas de juros atrativas (aos 12,75% ao ano), há dois aspectos que afastaram o investidor internacional do país. O primeiro é o próprio ciclo de quedas da taxa básica de juros brasileira. A perspectiva é que a Selic chegue a 9% no final de 2024, segundo o boletim Focus desta semana, o que reduz o diferencial de juros do país.
O segundo é o aumento das taxas nos Estados Unidos. Com os títulos considerados os mais seguros do mundo, nos maiores patamares em quase duas décadas, há uma migração dos investidores mais conservadores para as Treasuries americanas.
Além disso, as especialistas ouvidas pelo g1 afirmam que o mais importante é que o investidor sinta confiança no país. O rombo nas contas públicas acaba alimentando o desânimo com o Brasil, e tende a afastar os investidores que temem o risco fiscal.
A situação se transforma em um círculo vicioso: ao mesmo tempo em que a baixa perspectiva de consumo doméstico mantém os investimentos de empresários em produção interna mais tímidos, há menos arrecadação e a situação se agrava. A única alternativa, então, seria rever os gastos.
Inflação, juros e outros velhos conhecidos dos brasileiros
Olhando para os efeitos que o endividamento do país tem sobre a população, o maior deles é a inflação. Mas, antes de chegar esse impacto, alguns outros processos acontecem.
No primeiro momento, o déficit nas contas públicas torna o país um destino menos seguro para os investimentos, explica Rachel, da Rico. Então, para atrair dinheiro, o Brasil precisa emitir mais títulos de dívidas (que são os títulos do Tesouro), com um retorno que tenha juros convidativos, para que a rentabilidade compense parte do risco em investir no país.
“Mas existe um limite de quanto o país pode emitir em dívida pública para financiar suas despesas. Quando atinge esse limite e o país fica sem dinheiro, a última saída é imprimir dinheiro. E, como já sabemos, mais dinheiro em circulação faz subir a inflação”, pontua a especialista.
Rachel destaca que o Brasil ainda está longe de chegar a essa situação extrema, mas que, por saber exatamente como essa dinâmica funciona, conforme o país eleva suas dívidas, todo o mercado começa a projetar essa aceleração da inflação.
As expectativas de uma inflação maior por si só já são o suficiente para fazer com que produtores comecem a elevar seus preços. E isso vai se espalhando pela economia, mesmo nos setores mais da ponta, até chegar nas famílias de mais baixa renda, que são as que mais sofrem com a escalada dos preços.
Além da inflação, um cenário assim também favorece juros mais altos. Primeiro porque a única forma de conter a inflação é com a elevação dos juros, que tornam os processos de financiamento e tomada de crédito mais caros.
Mas, além disso, retomando a ideia de que para atrair dinheiro o governo precisa emitir títulos com bons rendimentos, o Tesouro Nacional precisaria oferecer taxas maiores aos investidores.
“Se os juros do governo são maiores isso afeta toda a população, porque são eles que servem como base. Se os juros do governo sobem, impactam financiamento imobiliário, de automóveis, tudo”, comenta a chefe de economia da Rico.
Por fim, taxas elevadas e inflação acelerada tornam o ambiente mais desafiador para a economia, que tem mais dificuldade para crescer.
Ariane, da Esh, explica que a única forma de solucionar a questão é reduzindo gastos e aumentando a receita. Ela defende o avanço das chamadas “reformas estruturantes”, como a tributária, que está em andamento e deve reformular o pagamento de impostos no país, e a administrativa, que, quando acontecer, deve rever o funcionalismo público no Brasil.
As economistas também concordam que, no longo prazo, outros gastos públicos também precisam ser revistos para que as contas fechem de forma sustentável.
Os auxílios sociais, segundo elas, são um exemplo: o ideal é que o governo crie uma estrutura em que esses auxílios sejam necessários apenas no curto prazo, possibilitando depois que os beneficiários possam ter uma melhor condição de vida por conta própria.